No Dia do Desarmamento Infantil, celebrado em 15 de abril, o Brasil é convocado a encarar uma das mais graves expressões da violência que assola nossa comunidade: o impacto das armas de fogo na vida de crianças e adolescentes. Essa data não é apenas simbólica, mas um apelo urgente à proteção integral de meninos e meninas que têm seus direitos violados em um país onde a violência armada é cotidiana.
Violência Letal: Quem são as verdadeiras vítimas?
Apesar da redução de 7,7% nas mortes violentas entre 2022 e 2023 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, 2024), os dados mostram que a letalidade armada continua a atingir, de forma desproporcional, os adolescentes brasileiros. Cerca de 91,6% das vítimas de mortes violentas tinham entre 15 e 19 anos (UNICEF & FBSP, Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes, 2024). Entre as faixas etárias mais afetadas, observa-se uma progressiva escalada da violência letal a partir dos 14 anos, com picos de vitimização aos 19 anos – fase da vida em que muitos sequer concluíram a educação básica.

Esse cenário se agrava com o fator racial. Crianças e adolescentes negros representam a esmagadora maioria das vítimas:
- 64,3% entre 0 e 4 anos
- 83,6% entre 15 e 19 anos
Só nos últimos três anos (2020–2022), 9.328 crianças e adolescentes negros foram assassinados (UNICEF/FBSP, 2024). A taxa de homicídios entre meninos negros de até 19 anos foi 21 vezes maior do que a de meninas brancas (Atlas da Violência/IPEA, 2023).
A cultura das armas e seus reflexos na infância
Entre 2017 e 2023, o número de registros de armas de fogo cresceu 227,3%, totalizando 4,8 milhões de unidades em circulação (SINARM/Anuário do FBSP, 2023). Esse aumento expressivo, impulsionado por políticas que flexibilizaram o acesso a armamentos, amplia os riscos para a população mais vulnerável. 60% das armas utilizadas em ataques a escolas foram obtidas dentro de casa – muitas delas legalmente registradas (Observatório de Segurança nas Escolas, 2023).

A infância brasileira não está apenas morrendo por armas. Ela também está sendo socializada dentro de uma cultura que normaliza o armamento. Armas de brinquedo, jogos violentos e conteúdos midiáticos que exaltam a força letal são frequentemente consumidos sem questionamento. Diversas pesquisas em psicologia infantil, incluindo estudos da American Academy of Pediatrics (2016) e de Brad Bushman (Universidade de Ohio, 2018), além de relatórios da UNESCO (2021) e UNICEF (2022), apontam que o contato precoce com armas de brinquedo pode impactar negativamente o desenvolvimento emocional da criança. Desencorajar esse contato precoce é uma das missões do Dia do Desarmamento Infantil. Não se trata de censura, mas de responsabilidade com o desenvolvimento saudável de crianças.
Ataques às escolas: entre a violência nas escolas e a violência contra as escolas
De 2002 a 2023, o Brasil registrou 41 ataques a 42 escolas, com 44 agressores (Observatório de Segurança nas Escolas, 2024). A maioria tinha em média 16,7 anos, e 88,6% eram alunos ou ex-alunos das instituições atacadas. Em 31,7% dos casos, houve mortes.

Segundo o Relatório Técnico do Ministério da Educação (GT Interministerial, 2023), a violência escolar é tanto consequência quanto causa de violências mais amplas da sociedade. O documento aponta que os ataques são, muitas vezes, cometidos por jovens movidos por ressentimentos, fracassos escolares e experiências de exclusão. Além disso, há influência de “copycat crimes” (crimes por imitação), como os que reproduzem os massacres de Columbine (EUA) e Realengo (Brasil).
Infância armada: uma ferida aberta nas favelas e periferias
Não podemos falar de desarmamento infantil sem denunciar a presença de armas em comunidades onde o Estado se faz presente apenas pela força policial. Crianças entre 7 e 12 anos são recrutadas por facções, utilizadas como “olheiras” ou carregadoras de armas (Relatório da Rede de Observatórios da Segurança, 2023). Muitas brincam com armas de brinquedo imitando práticas do crime organizado. Esse cenário não é fruto de escolhas individuais, mas da falência das políticas públicas que deveriam garantir educação, lazer e proteção social.
A resposta precisa ser coletiva e estrutural
A Campanha Nacional pelo Desarmamento, criada com o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), mostrou que é possível mobilizar a sociedade em torno da cultura de paz. Até 2005, mais de 340 mil armas foram entregues voluntariamente (Ministério da Justiça).
Porém, o aumento de armas durante o governo Bolsonaro, aliado à retórica de militarização da vida cotidiana, desestabilizou as iniciativas de desarmamento. É fundamental revogar propostas como o PL 4256/2019, que busca ampliar o acesso às armas por CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) – em clara contradição ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Desarmar a infância é garantir o direito à vida
Neste 15 de abril, a Coalizão pela Socioeducação se soma a todas as vozes que defendem a infância e a juventude brasileiras. Desarmar a infância é:
- Garantir que meninas e meninos cresçam em paz, com dignidade, oportunidades e proteção;
- Escolher a vida, a educação e a justiça social em vez da cultura da violência;
- Construir um futuro onde nenhuma criança seja vítima – nem algoz – da violência armada.
Para isso, reforçamos a urgência de políticas públicas baseadas em evidências, incluindo:
✔ Controle rigoroso de armas (revogação de leis que facilitam o acesso indiscriminado);
✔ Regulação das redes sociais (combate a discursos de ódio e conteúdos que incitam violência);
✔ Investimento em educação integral e proteção social para crianças em situação de vulnerabilidade.
A proteção da infância é um compromisso de toda a sociedade. Juntos, podemos transformar essa realidade.