Tráfico de Drogas e Trabalho Infantil: O Estado em Conflito com a Lei

Compartilhe

No Brasil, o trabalho infantil é proibido pela Constituição. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforça essa proibição, permitindo o trabalho a partir dos 14 anos apenas na condição de aprendiz, e a partir dos 16 anos, com restrições. Caso o trabalho seja noturno, perigoso, insalubre ou esteja listado na TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil), a proibição se estende até os 18 anos.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil como perigoso e prejudicial para a saúde e o desenvolvimento mental, físico, social e moral das crianças. Em 2016, a OIT estimou que 152 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, foram submetidos ao trabalho infantil.

Reconhecer os impactos e consequências do trabalho infantil na vida de crianças e adolescentes, tanto físicos quanto psicológicos, é desconstruir a falsa ideia de que o trabalho precoce é um caminho viável para o desenvolvimento humano e social. Antes de trabalhar, é preciso estudar, brincar e socializar com outras crianças para um desenvolvimento integral.

A Convenção 182, adotada por diversos países, incluindo o Brasil, define as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e adolescentes. Entre elas estão a exploração sexual, o trabalho nas ruas, em carvoarias e lixões, na agricultura com exposição a agrotóxicos, o trabalho doméstico e a comercialização de drogas. Crianças e adolescentes envolvidos nessas atividades são, na verdade, vítimas da da ineficiência do Estado, da família e da sociedade em protegê-los e assegurar-lhes seus direitos fundamentais.

Segundo o último levantamento do SINASE (2023), o tráfico de drogas é o primeiro ou segundo ato infracional mais comum em seis dos onze estados pesquisados. Isso demonstra que as medidas de proteção que deveriam ser aplicadas aos adolescentes envolvidos com a comercialização de substâncias ilícitas são frequentemente desconsideradas, impedindo que essa juventude seja protegida e entendida como vítima do trabalho infantil.

Esses números refletem não apenas a falta de oportunidades econômicas e educacionais para esses jovens, mas também a ausência de uma rede eficaz de proteção social. De acordo com Thaisi Bauer, Secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação, “A maior parte dos/as adolescentes selecionados/as pelo sistema de segurança pública e privados/as de liberdade pelo sistema de justiça tiveram uma variedade incontável de direitos negados pela ausência de políticas públicas que possibilitam o acesso à reparação histórica da população negra em virtude dos 500 anos de escravidão que inviabilizaram, inclusive, seu acesso à renda, à saúde, à educação integral, ao esporte e ao lazer.”

É importante ressaltar que a maioria dos/as adolescentes envolvidos na comercialização de drogas vem de famílias de baixa renda, onde o trabalho formal é escasso. Esses jovens muitas vezes vêem a comercialização de drogas como uma das poucas opções de sustento, em um ciclo de exclusão e vulnerabilidade. Mariana Chies, professora do Instituto de Ensino e Pesquisa (Inper), explica que esses adolescentes já estão inseridos no mercado informal, realizando atividades como entrega de panfletos, trabalho em lava-rápidos ou serviços de entrega. “Para muitos, o tráfico de drogas aparece como uma oportunidade de obter uma renda maior. Ao responsabilizá-los judicialmente, esses jovens acabam sendo marcados por um processo de apuração de ato infracional, retornando, na maioria dos casos, ao mesmo ambiente vulnerável de onde vieram, onde a presença do Estado e a eficácia das políticas públicas continuam deficitárias.”

É contraditório perceber que o próprio Estado responsabiliza adolescentes envolvidos na comercialização de substâncias ilícitas, em vez de reconhecê-los como vítimas de exploração ilegal, considerando que essa atividade é proibida por uma política de Estado fundamentada em acordos internacionais que o país assinou voluntariamente.

Para enfrentar esse desafio, é necessário um compromisso coletivo e coordenado entre o Estado e a sociedade civil. É fundamental investir em políticas públicas integradas que abordem as causas estruturais da comercialização de drogas e do trabalho infantil, garantindo acesso à educação, oportunidades de emprego e proteção social para todos os/as adolescentes. Apenas assim, o Estado não estará em conflito com a sua própria lei.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *